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Afinal, no direito prevalece o texto ou o contexto?

Uma deliciosa discussão iniciada – e ainda não concluída após séculos e séculos – já no início dos cursos jurídicos envolve a constante disputa, no Direito, entre texto e contexto.

Por texto, tem-se a letra da lei, a cláusula contratual, o escrito, o formalizado, etc.

Por contexto, os elementos além da forma, as intenções dos envolvidos, as informações conhecidas (e as desconhecidas) por eles, as premissas para o ocorrido, os objetivos almejados, etc.

A questão é que a história da humanidade nos mostra que muitas vezes (muitas mesmo!) o contexto não se confunde com o texto, surgindo conflitos. Chega a ser surpreendente, mas as pessoas nem sempre “passam a limpo” o que foi combinado entre elas, não adotam a clareza como norte. E mesmo quando há esse cuidado, ainda assim por vezes o que vai para o papel não expressa exatamente o cenário do caso.

Numa iniciativa apressada, talvez fosse possível afirmar que o Direito é o texto e que este tende a prevalecer, ainda que o contexto seja divergente. Porém, uma análise mais aprofundada aponta que o próprio texto admite hipóteses de sobreposição do contexto, o que, por vezes (raras, é verdade), é acolhido em decisões jurisdicionais.

Um primeiro exemplo seria o conceito de reserva mental, contido no art. 110 do Código Civil: “A manifestação de vontade subsiste ainda que o autor haja feito a reserva mental de não querer o que manifestou, salvo se dela o destinatário tinha conhecimento”.

Esmiuçando essa previsão legal, ela admite expressamente que “a manifestação de vontade” – leia-se, cláusula contratual – poderá ser desconsiderada se a contraparte tinha ciência de uma intenção diversa da pactuada. Vê-se uma expressa relativização do texto – contrato – frente ao contexto – reserva mental, intenção das partes.

Não estamos diante de uma mera previsão teórica, mas de uma possibilidade concreta. Nosso Eg. TJ-SP inclusive reconhece a aplicabilidade de tal instituto, como se vê no julgamento do processo nº 1029907-97.2017.8.26.0554.

Outro exemplo seria o instituto da supressio, com origem na boa-fé objetiva, afirmada no art. 422 do Código Civil. Em apertada síntese, o dever de lealdade entre os contratantes impõe que, apesar da previsão contratual de determinado direito, se ele não for exercido pela parte reiteradamente ao longo do tempo, nasce na outra parte uma justa expectativa de supressão, de abdicação desse direito.

Mais um exemplo seria o da função social dos contratos, à que a lei atribui natureza cogente, inclusive retirando a validade de pactos que a contrariem, conforme o art. 2.035 do Código Civil.

Um último exemplo, ainda, seria o instituto do abuso de direito (Código Civil, art. 187). O titular do direito tinha o direito, esse direito até então existia, mas ele é abalado a partir do exercício desse direito com excessos (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé o pelos bons costumes”).

Sem a pretensão de nos aprofundarmos na análise desses exemplos, que não são exaustivos (já que o objetivo aqui é enaltecer o aspecto contencioso-jurisdicional inerente ao conflito), todos apontam situações abstratas e que exigem interpretação conforme o caso concreto, com muita subjetividade.

Também apontam um fator crucial para o deslinde de uma controvérsia envolvendo uma disputa entre texto e contexto: a construção da argumentação lastreada em robusta produção de provas.

Nesta fase, convém destacar previsão da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) contida no art. 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Ou, ainda, o art. 8º do CPC, no mesmo sentido: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”.

Em regra, um julgador tende a dar prevalência ao texto. O texto existe para prevenir e solucionar conflitos. Afastá-lo poderia gerar insegurança jurídica, motivo pelo qual ele costuma ser prestigiado por nossos Tribunais. A relativização do texto é rara e minoritária em nossa jurisprudência.

A busca por essa segurança jurídica até ensejou uma modificação legislativa recente, com a criação do art. 421-A do Código Civil, do qual pode ser destacado o seu inciso III: “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”. Ou seja, o princípio do pacta sunt servanda (“os contratos devem ser cumpridos”), também conhecido como princípio da força obrigatória dos contratos, continua em absoluta, plena e fortalecida vigência.

Mas, pelo menos até este momento de nossa evolução como sociedade, os conflitos humanos ainda são analisados e decididos por…humanos, os quais desfrutam de uma incessante, inquietante e permanente busca pelo sentimento de justiça.

Portanto, apesar de improvável, para que um Magistrado decida flexibilizar o texto, o operador deverá apresentar uma construção argumentativa sólida e devidamente comprovada, de forma que a “injustiça” ao se afastar o contexto represente algo mais relevante e impactante para aquele determinado caso concreto do que a possível insegurança de se relegar o texto.

Fonte: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/afinal-no-direito-prevalece-o-texto-ou-o-contexto.ghtml

*Rodrigo Bella Martinez é advogado, bacharel pela USP e sócio de Bella Martinez Advogados. Especialista no Contencioso Estratégico.

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